5/29/2008

"só enquanto eu respirar"

Ele garante um mundo melhor pro seu filho. Confirma com todas as letras escondidas que teremos paz, harmonia, natureza.
Ele se deita todas as noites antes de dormir e faz um relatório imaginário do seu dia-a-dia. Pensa que já fez muito pelo mundo e que continuará fazendo. Separa o lixo reciclável do lixo orgânico, mas no seu conjugado não tem espaço pra tantos sacos e ele se livra deles antes que percebam sua imprudência. Precisa urgente de uma nova agenda para anotar os compromissos de ontem. Ele aguarda ansioso esse mundo melhor chegar. Um mundo em que violência e trégua não existem. E se não há mortos, o que faremos com tantos cemitérios? Não busca resposta porque cansou da pergunta.
Ele acorda suado de coberta, ficou com medo do escuro do quarto, o silêncio o enlouquece. Liga o ar condicionado para espantar os mosquitos. Esses insetos estão cada dia mais insensíveis. Dorme com música pra ninar os sonhos. Ele é forte e viril, mas precisa tomar o achocolatado antes do trabalho, senão não rende, senão cansa antes das 9h. Ele busca um mundo melhor pro seu filho. É desses homens que cumpre as promessas entre uma figa e outra. Não quer mais lixo nas ruas nem rios poluídos, mas esqueceu que o óleo da fritura precisa ser guardado e não despejado na pia branca. Não se importa. Afinal, foi só dessa vez. Na próxima ele se lembrará e fará como mandam as regras do bom comportamento. Ele sonha com o dia em que todos sairão às ruas para se cumprimentar com sorrisos, odeia os encontrões das calçadas estreitas. Não suporta as cabeças baixas daqueles que vagam, apressados, sem tempo e sem futuro. Sempre fecha o rosto quando isso acontece.
Ele procura nas mãos um motivo a mais para sorrir, mas esquece que o sorriso está guardado nos olhos. Finge prazer na cerveja gelada depois do expediente e volta exausto de tantas filosofias de botequim.
Ele tira os sapatos para entrar em casa, deixa na porta os restos de um dia cansativo e triste, com sol e chuva. O tempo hoje em dia está caducando, esqueceu-se o que é ser verão e inverno e misturou tudo num mesmo momento, pra ninguém perceber sua falta de atenção.
Ele acorda mais um dia pra labuta. Promete cuidar do mundo que será de seu filho, cuidar de verdade, fazer sua parte. Fuma um cigarro enquanto espera a condução. Não sabe o que fazer com o filtro, já apagado, e o joga na boca de lobo próxima ao meio-fio. Todo mundo faz isso, uma bituca a mais não fará diferença.
Ele embarca no latão lotado, desliga-se dali e lembra da promessa. Lembra que não foi fiel aos conselhos que deu, nem seguiu os pedidos do mar, nem ouviu os lamentos do rio. Volta ao seu mundo sem culpa, quando seu filho nascer ele fará tudo do jeito certo.

3 comentários:

Leonardo Barros disse...

Ei dona Baratinha!
Gostei muito do seu blog!!
Parabéns!

Unknown disse...

e aí dona, baratinha total, tenho lido, ido e vindo em suas frases, com muita calma...

gosto do jeito com o qual você coloca os objetos no sentimento das pessoas, desde o filtro do cigarro até o óleo de cozinha, essa escrita é forte pois é palpável.

o roedor de ventanias

Insanidade disse...

isso tinha que virar música!