6/26/2007

Dá de lá bandeira qualquer, aponta pra fé e rema

Falta Delicadeza

Outro dia, conversando com a parte mais velha de mim concluí que falta ao mundo “delicadeza”.
Sim, simples assim...falta delicadeza ao telefone, no “obrigada” ao motorista, no “eu te amo mais que tudo”.
Falta delicadeza para perceber que uma discussão começou porque alguém precisava chamar a atenção e gritar “preciso de você do meu lado”.
Falta delicadeza aos amigos que deixam escapar as verdades mais duras. Essas verdades nem sempre são necessárias, sempre fui contra a sinceridade sem medidas.
Falta delicadeza à filha, que esquece as meias debaixo das cobertas, que esquece que as cobertas forravam a cama quente que a mãe arrumou com muita delicadeza.
Falta delicadeza na família que almoça junto todos os dias. A rotina os faz esquecer de retirar os pratos e limpar a alma na ponta da toalha.
Falta delicadeza ao casal apaixonado. Falta delicadeza no supermercado.
Falta delicadeza nas relações profissionais, todos gritam, todos têm razão.
Falta delicadeza ao tomar de leve os lábios, ao sussurrar nos cabelos de quem se quer bem.
Falta delicadeza nas respostas de e-mail, na internet em geral, que tornou frias as conversas de botequim. Aliás, faltam conversas de botequim. Faltam amigos pra bebemorar o prazer de respirar, de ver a lua minguante, de chegar em casa tarde da noite.
Falta delicadeza ao se apaixonar. Falta delicadeza no sexo selvagem, falta delicadeza nos encontros casuais. Faltou delicadeza outro dia, na minha casa, na televisão, nos jornais e notícias.
Falta delicadeza no modo de se sentar, de agir, de puxar o ar pra dentro dos pulmões.
Falta delicadeza ao estender os lençóis e recolher os pés.
Falta delicadeza para dizer “ei você, esquece de mim pra eu poder te esquecer”.
Falta delicadeza no trato. No prato. No ato.
Mas não precisa ser assim. É simples demais! É só fechar os olhos pra ver o mar, é só abraçar depois do amor, é só usar a boca pra desculpar, é só balançar os cabelos pra seduzir, é só deixar o vento levar as histórias pra longe.

É, morena, tá tudo bem...

Luana

Enquanto caminhava pela calçada ela percebeu um passarinho pousado na janela do vizinho. Naquela janela da casa amarela onde moravam o casal mais velho, o menino doente e a mocinha estudiosa. Parou para afagar o pássaro, que assustado voou na direção contrária.
Luana sempre caminhava pela calçada e sempre desejava tocar o pássaro colorido com as próprias mãos, quando tomou coragem e avançou em sua direção ele voou, deixando um rastro de lamento pelo ar.
Ela o seguiu com os olhos, mas o sol à pino a cegou por instantes, quando olhou em direção ao céu. Ela baixou a cabeça com firmeza e apertou os olhos pra compensar o brilho excessivo.
Nisso seus olhos brilharam ainda mais e coloriram sua imaginação com tons ainda mais fortes que os do pássaro da casa amarela.
Luana então sorriu pra dentro. Sorriu de alma, de coração. Sorriu com o pulmão e o estômago e sentiu que as asas do pássaro estavam dentro dela, fazendo cócegas na sua barriga.
Voltou a caminhar pela rua, afastando-se da casa amarela em direção ao seu futuro, que a cada minuto que passava virava presente e logo em seguida passado.
No conjugar de seus passos ela descobriu um ritmo diferente, e gostou e inventou outros. Ora balançando as cadeiras, ora embaralhando os pés.
Luana havia descoberto o pássaro colorido na casa amarela, na casa onde morava o casal mais velho, que casado há mais de 50 anos ainda namorava no portão. Ela sempre observou de longe os dois, de mãos dadas, de olhos dados, de braços dados, de almas dadas.
Achava divino os anos terem passado e o amor ter permanecido. Achava mágico os olhares de cumplicidade, a cabeça dela no ombro dele, a proteção.
Na casa amarela também morava o menino doente, decerto o neto desgarrado de um casal feliz. O menino que andava sempre tão branco como um fantasma de filme infantil. De casacos no calor ou no frio ele não brincava de pelada no meio da rua, não soltava pipas no alto no morro e não construía casa nas árvores. Era um menino doente de infância. Luana se comovia quando se deparava com ele. Lamentava a falta de amigos, e tinha certeza que essa era sua maior doença. Não compreendia como uma criança podia respirar sem aquela gritaria típica ao seu redor. Não aceitava aquela solidão doente de afeto, de troca de figurinhas, de banho de mar.
Mas Luana esquecia toda essa tristeza quando conversava com a mocinha estudiosa. Ah, que orgulho, ela pensava! A mocinha estudava porque gostava das palavras, dos números, das figuras difíceis e coloridas dos livros de ciências. E Luana era seduzida pelas conversas da mocinha, que tinha lábios grossos como os seus e cabelos que brilhavam mesmo no escuro. Luana tinha certeza que a mocinha também brilhava no escuro e que mesmo numa caverna assustadora ela estaria acompanhada de seus pensamentos profundos.
As duas nutriam a paixão pelo conhecimento, por entender e descobrir como tudo é feito. As casas, os carros, as pessoas. Mas a mocinha só tinha uma parte desse conhecimento. Quando falavam de por quês, era Luana que virava estudiosa.
Luana e seus pensamentos, Luana e seu pássaro de estimação. O pássaro que ela só descobriu ter dentro de si quando apertou os olhos. E foi quando apertou os olhos com força é que enxergou melhor. Luana e seu mundo colorido. Colorido cinza em dias tristes, e colorido arco-íris em dias de sol.
Luana que continua a conjugar os passos porque precisa chegar em algum lugar.
Talvez para abrir o portão do casal mais velho, talvez para salvar a infância perdida do menino doente, talvez para entender ainda mais o conhecimento da mocinha estudiosa.
Talvez pra algum outro lugar ainda mais longe, onde se fala outra língua ou onde se só tenha sol.
A verdade de Luana não estava no pássaro colorido, mas deve estar pousada em alguma janela por aí.